Custa deixar San Francisco… já adiei a partida duas vezes, mas hoje é a valer. À saída da pousada de juventude de Fort Manson, éramos quatro a montar a tralha nas bicicletas.
O Idílio continua a sua aventura de bicicleta na América do Norte. http://bacalhaudebicicletacomtodos.blogspot.com/
A Sally, uma sexagenária seca, alta, ágil e com um sorriso permanente no olhar e no rosto, era a mais comunicativa do grupo e foi com ela que entabulei conversa. Faz parte de um grupo de 12, dois ou três australianos, um inglês e os demais americanos dos quatro cantos do país. Estavam a pedalar juntos desde Seatle, sempre ao longo da costa, numa viagem organizada, mas com poucas regras… pedalam livremente ao longo do dia, sós ou em grupo, cada um ao seu ritmo, reunindo-se ao fim do dia no parque de campismo previamente combinado. O jantar e o pequeno-almoço são as duas refeições conjuntas, rodando diariamente a dupla de cozinheiros.
Tal como eu, vão seguir a estrada nº1 para sul, até San Diego, onde esperam chegar dentro deduas semanas e meia. Até Monterey fiz praticamente parte do grupo…Deixei Fort Manson pela manhã, com a luz suave do sol dourando os enormes armazéns begede telhados vermelho vivo, frente ao mar azul intenso e ladeados pelos intermináveis relvadosverdes, fervilhando de gente a fazer desporto.Alonguei-me no caminho junto ao longo da baia… um último olhar ao “palace of fine arts” que,à primeira vista e à distância, uma semana atrás me pareceu a cúpula de uma enormemesquita. Uma foto no parque do presídio, onde algumas mesas já estavam repletas de comidapara alguma comemoração ou simples convívio capaz de se prolongar por todo o dia. Ao lado,uma jovem de traços orientais deve ter trocado o escritório ou a biblioteca por uma mesadiscreta no jardim, onde trabalha concentradamente no portátil.
Um par de pelicanos castanhos voam em círculo sob a marina e de repente um deles parece despenhar-se, mergulhando a pique na água, de onde emerge a engolir algum peixe com aparente esforço.
For Point, mesmo debaixo do tabuleiro da Golden Gate, é um edifício de tijolos vermelhos e muros grossos, que domina a entrada na baia de San Francisco. Do último piso, o olhar escorre pela ampla paisagem em redor, de Alcatraz a Sousalito, acabando preso às velas coloridas de pequenos veleiros que vagueiam sem pressa na baia.
Subo uma última vez à Golden Gate e percorro meio tabuleiro… durante a semana apenas uma das faixas laterais está acessível a peões e bicicletas. Apesar de ser manhã, e sexta-feira, é preciso pedalar devagar, parar, pedir licença e avançar devagarinho por entre os passeantes que, às dezenas, percorrem o tabuleiro suspenso sobe as águas verdes da baia.
A Ocean Beach está fria e cinzenta. São quilómetros de praia apenas partilhada pelas gaivotas, que parecem dormitar numa pata enquanto a outra descansa, e dezenas de surfistas, negros e elegantes como corvos marinhos nos fatos de neoprene e pranchas coloridas. Algumas brigadas de voluntários apanham o lixo para enormes sacos de plástico. É muito comum ver grupos de voluntários ao longo das estradas em tarefas de limpeza…
Frente ao mar as casas são pequenas, dispersas, frequentemente mais baixas do que as árvores que as rodeiam e com mais cores que o arco-íris. Bastam duas dezenas de quilómetros para a “grande cidade” desaparecer, dando lugar a uma paisagem completamente diferente, árida e selvagem.
A estrada nº1 segue a linha de costa, praticamente sempre colada ao mar. Em locais de maior concentração urbana e com mais trânsito, é vedado o acesso a bicicletas mas surgem invariavelmente estradas alternativas, por vezes construídas exclusivamente para esse fim…Podem assumir três características distintas: “Bike route”, em que a estrada “normal” é partilhada pelas bicicletas; “Bike lane”, em que a estrada tem uma faixa delimitada e exclusiva para as bicicletas; e “Bike path ou trail”, que é mesmo uma via fisicamente autónoma e distinta. A sinalização é impecável e mesmo um despistado como eu, com um vulgar mapa das estradas na bagagem, não senti dificuldades encontrar o caminho correcto – mais “desvio”, menos pergunta…
As praias sucedem-se, mais pequenas do que grandes, cavadas em falésias escarpadas, de areias claras e vegetação rasteira a cobrir as dunas suaves. As ondas pequenas, de águas verdes e cristas brancas, trazem os surfistas de negro empoleirados precariamente até ao areal. Praticamente não há veraneantes, pois apesar do céu completamente azul e sol brilhante, a temperatura mal dá para tirar o corta-vento.
Reservas e parques naturais vão intercalando com as praias. São severamente protegidos, só se pode andar pelos passeios delimitados na orla, com bancos e mesas para pic-nic, têm informação “interpretativa” sobre a fauna e flora, avisos por todo lado a alertar para a fragilidade do ecossistema, desde as estrelas-do-mar à flora, das aves às dunas e mesmo rochas, e recantos encantadores onde surpreendi um jovem de joelho na areia, cabeça erguida e uma pequena caixa na mão que estendia à rapariga embevecida…
As povoações são ralas e com escassas centenas de habitantes. Por vezes surge o que parece ser uma quinta em estado de semi-abandono e outras procurando fazer a diferença através da produção biológica, venda directa, imaginação e muita simpatia… Vejo e sinto ao longo do percurso, outros percursos noutras latitudes e longitudes. Os mesmos tons de outono, a mesma vegetação dunar, as mesmas escarpas, ravinas, areais. A linguagem da terra, da natureza, dos elementos afinal é tão semelhante… acredito que se falasse com os agricultores locais, ouviria as mesmas queixas, os mesmos problemas, os mesmos anseios, as mesmas dificuldades.
Raramente se avistam casas de férias e quando surgem, estão discretamente integradas na paisagem. São largas dezenas de kms de uma beleza selvagem,
agressiva, rústica, quase inóspita, onde o cheiro a mar, o marulhar das ondas em suave baloiço, apelam à modorra num qualquer dos bancos espaçadamente colocados ao longo da linha de costa, junto à ciclovia/passeio marítimo de toda a Half Monn Bay.
Após Santa Cruz, ou mais precisamente Capitola, uma pequena aldeia colorida, nascida no mar e a viver apenas do turismo, tem inicio a mais impressionante zona de cultivo de vegetais que pudesse imaginar. Nas palavras de uma professora reformada, com ar de charlatã, que conheci em Monterey, será a maior área contígua de produção de vegetais do mundo.
Seja ou não a maior, são dezenas de kms de culturas, primeiro praticamente só morangos, depois couves, alfaces, cenouras e mais uma ou outra espécie que não consigo identificar. Tudo geometricamente disposto, extensões que confundem o olhar…
O reflexo do sol nos intermináveis plásticos que cobrem a terra à espera que os morangos despontem, por vezes confunde-se com o próprio oceano. Os tractores, de diversos formatos e alfaias distintas, movem-se numa cadência constante até desaparecerem na linha do horizonte…lavram, endireitam o solo, abrem regos rectilíneos, pulverizam. Há cheiros intensos e diversos no ar… os menos desagradáveis são os restos das culturas em decomposição, que integrarão o próximo ciclo produtivo. Paro e provo dois ou três morangos a medo. Não são deliciosos…apenas morangos.
Ranchos intermináveis de homens e mulheres acocorados lado a lado, chapéus de abas largas na cabeça e lenços – quando não sacos de plástico – em torno da cara e pescoço, joelhos no chão e mãos ágeis deslizando velozmente de morango para morango, de alface para alface, de couve para couve. Corta e passa para trás. Outra mão pega, limpa algumas folhas e coloca no tapete rolante onde dezenas se alinham a limpar, embalar e carregar nos camiões que esperam em fila. A fábrica veio ao campo… Os sotaques que se ouvem, a música e as notícias que se desprendem dos rádios, que silenciam os homens e mulheres, são invariavelmente hispânicos.
Parecem soar tristes, como os olhos negros na tez morena e cabelos negros… raramente vi um sorriso e nunca uma gargalhada. Monterey vai despontando lentamente por entre o nevoeiro denso e pastoso, do outro lado da longa baia. Na verdade a cidade parece viver de braços estendidos para a frente marítima, para a baia deáguas verdes e transparentes, onde as focas e lobos-marinhos brincam, nadam ou lutam com tal graciosidade que mais parecem estar a representar. No pontão de construção rude, há pescadores de todas as idades empoleirados em qualquer beco, esperando que algum peixe solidário se deixe ir no engodo, para gáudio exuberante do miúdo de tronco nu, que maneja a cana incessantemente.
Os pelicanos castanhos disputam as rochas aos corvos marinhos, às gaivotas e mesmo a alguma foca em tempo de sesta. Parece aquele jogo das cadeiras, em que há sempre uma pessoa a mais… entardece devagar e a luz do sol vai-se alongando em reflexos dourados, projectando nas águas da baia as cores e formas mansas da vida no porto.
Do porto de pesca pequenas embarcações coloridas continuam a partir, regressando com pequenas quantidades de pescado, especialmente marisco, servido logo ali, nos restaurantes caros que sucederam aos velhos armazéns.
Cannery Row está repleta de Jonh Steinbeck. Dos hotéis, aos cafés; dos gift shops aos restaurantes; da praça, aos cocktails. Mesmo assim, há lugar para discretos placards históricos sobre o passado mais distante. E lá está um lembrando que os “baleeiros portugueses vinham no século XVIII pescar baleias à baia de Monterey. Matavam-nas, extraíam-lhes a gordura e faziam o óleo no local, devolvendo os restos ao mar. O óleo era utilizado essencialmente para iluminação, mas com a descoberta do petróleo, a actividade deixou de ser rentável”. E outro ilustrando a intensa história da industria da conserva de sardinhas, do surgimento ao apogeu, durante a II guerra, e a extinção. E diversos sobre a vinda de Hollywood a Monterey e a
Cannary Row, destacando um filme de Fritz Lang, numa das primeiras representações de Merlyn Monroe.A ciclovia e o passeio marítimo prosseguem colados ao mar. Há parques de recreio, mesas para pic-nics, locais específicos para observação da abundante fauna marítima, com painéis (in) formativos sobre as espécies ou a história de cada local, bancos defronte ao mar, quase continuamente.
O cheiro frente a Bird Rock é nauseabundo. Santuário de aves migratórias que ali permaneceram durante largas semanas a nidificar e procriar sem “arredar pé”, agora são as focas e lobos-marinhos que disputam cada centímetro. E o resultado da dupla presença é o “famoso” guanaco, cujo cheiro até faz comichão na garganta e ardor nos olhos.
Até Carmel, a costa selvagem, rochosa e árida, contracena com extensos campos de golfe e habitação luxuosa, sempre perdida na vasta mancha florestal.
A estrada afasta-se repentinamente da costa, perfurando o vale sinuoso de colinas suaves que crescem até tocarem as nuvens baixas. Deixa de se ver e ouvir o imenso oceano de chumbo e somos invadidos pelo aroma húmido de Outono de Los Padres National Forest. O parque de campismo Pfiffer Big Sur, é a porta de entrada, mas também o coração, de Los Padres. As copas das árvores enormes e densas, roubam a luz do sol e trazem a noite serôdia. Os troncos, ora rectilíneos apontados ao céu, ora contorcidos em formas requintadas, parecem brincar em misteriosos labirintos. As folhas em tons de fim de vida e formas despreocupadas, matizam o solo de sombras e reflexos suaves. Os escassos raios de luz que logram transpor a floresta, projectam sombras fantasmagóricas, clamando por duendes e bruxas imaginários. Ocupo o último lugar disponível no espaço reservado a baikers e hikers e o casal de alemães que chegou depois, tem de pedir permissão para se instalar num lugar “normal”. Na Califórnia parece haver uma grande convergência de vontades e interesses em torno da utilização da bicicleta. Não sei quem nasceu primeiro, se o ovo, se a galinha, mas a enorme comunidade de ciclistas, com inúmeras organizações, associações e realização de eventos, tem como contrapartida uma vasta rede de ciclovias, sinalização abundante e diversas vantagens para os ciclistas. Uma delas é a existência de locais específicos e tarifas reduzidas nos parques de campismo públicos. Os preços normais rondam os 25 a 30 dólares, e 5 ou 6 dólares para ciclistas…
Até Santa Bárbara, o nevoeiro cerrado e a chuva miudinha fundem-se e confundem-se… roubam a floresta e a montanha, deixando adivinhá-las pelo cheiro e pelos constantes declives da estrada; roubam o mar, as ondas e as ravinas, deixando pressenti-las no incessante marulhar da água revolta; roubam as aves, as focas e os elefantes marinhos, deixando ouvi-los nos gemidos afogados das lutas ou brincadeiras.
Santa Barbara parece-me representar uma viragem no mapa da costa da califórnia…a cidade gira em torno da State Street, uma longa rua ladeada de palmeiras, casas baixas e pequenas, de formas curvas, terraços, pátios com entradas em arcos ovais. Toda a vida parece convergir para esta rua…há nomes em espanhol, italiano, francês e mesmo inglês.
As lojas são pequenas, coloridas e diversificadas, desde a geladaria, às fotocópias; do teatro, ao cinema e à ópera; do macdonald, à steack house; da radioshack à cartier; da discoteca à livraria e às antiguidades. A população é colorida e democrática…scaters, bikers, esfarrapados, pedintes, estudantes, friks, turistas, excursionistas, emproados, reformados. A State Street leva-nos até ao porto e ao museu marítimo. Parte do museu estende-se pelo próprio porto, numa sequência de barcos com memória, que contam a história da cidade, da pesca e do país: os aleeiros, o táxi, o transporte local de mercadorias, a pesca do marisco, os barcos patrulha…
O Bill não quer saber da história nem desses barcos que para aí estão só a ocupar espaço…é pescador, vive da pesca, ama a pesca e passa os dias no mar. Está a regressar de lançar asredes (ou armadilhas – o meu inglês não alcança…) e à tarde vai recolher a pescaria com a mulher. Pesca essencialmente marisco, que tem boa saída na cidade – dois ou três restaurantes locais ficam-lhe com toda a pescaria. O canzarrão assiste indiferente à conversa…
Muitos dias tem um dia…
Acordei sarapantado com o telefone a gritar no silêncio húmido da tenda. Dois bons amigos quiseram partilhar comigo o almoço de Domingo no Stop do Bairro… apesar de não me dizerem a ementa, conheço-a de cor e, talvez pela primeira vez desde que deixei a ibéria, salivei saudades e senti o travo amargo na garganta… por pouco tempo, pois quando tomava o meu banal pequeno-almoço – duas sandes mistas e uma terceira com o redescoberto delicioso sabor da infância: nutella e banana – recebo uma mensagem. Desta vez estavam em minha casa a beber cardhu à minha saúde! E eu não resisti, juntei-me a eles para partilhar as pequenas estórias do dia-a-dia, os golos falhados e frangos sofridos na jogatana dos Domingos de manhã, combinar o próximo filme, cartada ou jantarada… despedimo-nos no silêncio de um último trago à saúde, ao Ushuaia e à fraterna amizade, que não tem “longe nem distância”.
Eles regressaram às suas casas, depois de me regarem as plantas e arejarem a casa; eu terminei o pequeno-almoço sob um céu de chumbo e água, filtrada pelas folhas douradas de Outono do enorme plátano sob o qual pernoitei, em Leo Carrillo State Beach. Apesar da hora vespertina, as bermas da estrada já estão repletas de carros estacionados de onde saem surfistas de todas as idades, prancha debaixo do braço e passo apressado para a crista da onda.De Leo Carrillo até Santa Mónica, não há praia que não tenha ondas e não há onda que não leve na crista vários surfistas de negro, dançando em precário equilíbrio até invariavelmente se esparramar na curva espumosa da onda e regressar ao ponto de partida.
Reflicto se faço uma incursão rápida ao “centro” de Los Angeles ou prossigo ao longo da costa, quando me apercebo que não tenho travão de trás… um dos calços, já completamente gasto, deve ter-se solto. Como os da frente não estão muito melhor, a prioridade é encontrar uma loja aberta…pois parece que é domingo.
Apesar da estrada ser predominantemente plana, com a chuva e sem travão, as paragens nos semáforos são tensas e já tive de recorrer ao método primário do pé no pneu. Em Malibu, pressinto pela abundância de lojas, escolas e demais aparatos dedicados ao surf, um dos paraísos surfistas, um estrondo enorme faz-me dar uma guinada tensa na Dempster.
No semáforo à minha frente um mercedes e um jipe chocaram com violência, em piões e capotanço. Alguém deve ter ignorado o sinal vermelho…
Prossegui com alguma tensão. Aquele acidente fez-me mal aos nervos. Mesmo um tipo como eu, que “raramente pensa”, especialmente no perigo, não conseguia afastar o estrondo da cabeça e os carros a rodopiarem na estrada…
As bermas da estrada são grandes mas estão invariavelmente ocupadas por carros de surfistas estacionados, o que me obriga a pedalar no limite da faixa de rodagem e da berma. De repente sai um tipo disparado do meio de duas carrinhas estacionadas e atravessa-se na minha frente. Nem tive tempo de accionar os travões que não tinha e deu-se o inevitável: afaguei a estrada com delicadeza e suavidade, por entre mil desculpas do tipo, um alforge a deslizar e um susto…
Estava tomada a decisão! Iria para sul, ao longo da costa e LA – Downtown e hollywod – ficam para a viagem de regresso.
Pouco depois tem início a Marvin Braude Bike Trail, uma ciclovia com dezenas de Kms ao longo do areal quando não mesmo praia adentro, por onde circulam centenas de ciclistas e skaters de todas as idades e ritmos. Há dezenas de redes de vólei de praia. Numas jogam pares, noutras, quadras, noutras é ao molho. Numas limitam-se a tentar passar a bola para o campo adversário, noutras joga-se aos três toques, com remates suspensos no alto e bloco organizado. Numas jogam barrigudos e carecas, noutras elegantes louras e noutras, todas as ores. Ao lado da pista de bicicletas há outra para peões. Uns passam a correr, outros acaminhar; uns de fones nos ouvidos, outros em grupo a cavaquear. Parecia que em Santa Monica toda a gente tinha vindo para a praia praticar desporto…e senti um formigueiro nas pernas e na sola dos pés, com vontade de largar a bicicleta e correr na areia molhada.
Precisava de travões e era domingo. Deixei o Marvin Braude bike trail e procurei uma rua interior. Estava na main street a consultar o mapa e quando levanto o olhar deparo-me com a Bike Attack mesmo na esquina ao meu lado. Está aberta e repõem calços novos nos travões…sei que os suportes da frente onde encaixam os alforges estão partidos e decido substituí-los também…a procissão ainda vai no ar e mais tarde ou mais cedo, acabarão por ceder completamente. Combinamos meia hora para a reparação e vou passear pela Main Street. E descubro outra Santa Mónica, apenas duas ou três ruas afastadas da praia. Casas pequenas, traça antiga e repleta de gente a passear pela rua, nas pastelarias, na conversa…Ao lado do museu há mais movimento: é o “farmers market”. Uma praça pequena repleta de tendas com pequenas vendas de produtos agrícolas. Dos frutos aos legumes; dos vegetais às flores; do mel aos doces; do pão aos bolos e frutos secos; dos sabões aos cremes de beleza; da tasca de comes e bebes aos sumos naturais feitos na hora; do quiosque dos “farmers”, com livros de receitas, especificações dos produtos, referências e moradas dos associados, ao grupo de cordas que animava a feira alternando música country com erudita…E o local repleto de gente de mais cores que as do arco-íris.
E de repente estava sentado num degrau da escada, a saborear um prato de comida “nova” e apaladada, a assistir a um concerto e senti-me transportado para há 30 ou mais anos, na feira dos 14 de cada mês, na aldeia vizinha do castelo. Vi regatear o preço dos cabritos, dos borregos e dos leitões. Vi o “propagandista” a
anunciar não por 5 000, nem por 4 000, nem 3 000, mas apenas 2 000 escudos um enxoval completo, mais um par de botas. E antes que algum maluco se chegasse à frente e estragasse a jogada, baixava apressadamente para 1000 escudos apenas!! por entre os protestos ensaiados da mulher/ajudante. E senti o aroma da tasca dos frangos e o sabor da mini, naquele dia de festa, caso a venda dos leitões ou dos cabritos tivesse ido a bom porto e carteira estivesse menos tisnada que o habitual… E estava tudo aqui e lá, nosofisticado e caro “farmers market” e na popular, rude, biológica e barata feira dos 14… De regresso à Bike Attack esperava-me uma surpresa desagradável. Afinal a própria suspensãoa frente estava partida ou partiu-se quando o mecânico tirou os apoios dos alforges para substituir. Terá sido do “deslize” da manhã…? Uma suspensão em segunda mão, foi a solução para a bolsa depauperada.
De volta à Marvin Braude, procurava o parque de campismo do meu mapa, em Docwiller State Beach. Certo é que o campismo não apareceu…havia um parquemas só para caravanas. Estava farto daquele dia cheio de boas e más surpresas e decidi que acamparia no primeiro local sofrível que encontrasse e que não dissesse explicitamente que era proibido acampar. E entre o mar e a pista do aeroporto de Los Angeles, num quadrado de relva viçosa, baloiços e bancos de recreio, montei a tenda mais uma vez sob a chuva e o nevoeiro.
Entre a expectativa de ser acordado a qualquer altura por algum polícia zeloso, o marulhar constante das ondas do mar, o desnível do solo e o ruído ensurdecedor dos aviões a descolarem aos pares por cima da minha cabeça, esperei que a noite levasse os dias que o dia teve, nem todos bons, nem todos maus, mas todos singulares.
Passar o porto de LA e chegar a Long Beach de bicicleta não foi uma tarefa amigável! Os camiões de muitas toneladas, muitos reboques e semi-reboques, muitos eixos e muitas rodas, por estradas em obras, vias sem acesso a bicicletas, e becos e ruelas que desaguam numa doca do porto, sem saída, faziam a adrenalina disparar e o suor pingar…
Long beach não é tão longa assim e a meio da tarde estava praticamente deserta. Na verdade, com excepção das três ilhotas à ilharga, não vislumbrei nenhuma singularidade na praia. O mesmo areal grande e plano de Santa Monica; a invariável ciclovia e passeio pedestre, palmeiras e os prédios frente à praia, de longe os maiores de toda a costa.
Queria chegar cedo ao parque de campismo de Bolsa Chica para aproveitar o escasso sol e secar o equipamento de campismo, que há quase uma semana não seca completamente. Quando chego ao parque, e apesar das indicações do mapa, mais uma vez me deparo com a impossibilidade de acampar. A mesma estória de só as auto-caravanas serem admitidas.
Mostro o mapa dos “State Parks” e a indicação de “tent sites”, mas, como muito bem sabia, não a conseguiria demover…Regressei lixado à estrada, pedalando apressadamente para percorrer os cerca de trinta kms que me separavam de Newport Beach, o próximo campismo privado, onde adivinhava que iria pagar uma pipa de massa… Agora as praias sucedem-se e as povoações são contíguas. Chego a Newport Beach já ao entardecer. O parque de campismo tem uma localização excelente, mesmo na margem de um braço do mar que entra terra adentro. As instalações são de luxo e o preço a condizer… Durante a noite desencadeia-se uma tempestade que continua todo o dia… trovoadas sucessivas, chuva a potes, vento forte. Esperei até às 11h a ver se amainava mas não havia sinais de cedência… apenas oscilações de humor. Vesti a minha melhor paciência, calcei a melhor persistência que encontrei, tomei uma dose dupla de resignação e uma tripla de desafio e atirei-me de cabeça para a frente. Por vezes tinha de fechar os olhos, pois a chuva parecia fazer feridas. Por vezes tinha quase de parar e passar com a bicicleta à mão em locais da estrada alagados pela água. Por vezes parava debaixo de uma varanda ou toldo para evitar uma rajada maior de vento. E uma vez um tipo em mangas de camisa, um copo de café numa mão e um bolo na outra e um ar feliz no olhar, diz-me: se não fosse estas tempestades, como poderíamos apreciar verdadeiramente o lindo sol o ano inteiro? E eu acenei-lhe que sim, que era mesmo isso que eu queria – sol o ano inteiro!! pelo menos o próximo ano!!
Cheguei a San Clement State Beach, tudo escorria água, incluindo as nuvens que pareciam rotas. Numa aberta, que é como quem diz, chuva menos intensa, montei a tenda numa pequena elevação debaixo de um pinheiro – parecia uma autêntica ilha. Na verdade os lugares para acampar estavam inundados por água, que corria em riachos por todo o parque…enfiei-me na tenda e nem saboreei as duas ou três sanduíches do jantar.
Depois da tempestade, a bonança vem, mas devagarinho…
Tinha pensado completar os cento e poucos quilómetros até San Diego e pernoitar aí num dos Hostals. Mas o fim do dia pôs-se bonito, com o sol a espreitar, a temperatura a subir e o mar com aquela cor de chumbo que parece afundar tudo com ele. Parei no parque de San Elijo ainda não eram três horas e apesar de os bikers só poderem fazer o check-in depois das 4h30, as simpáticas empregadas deixaram-me instalar. Expliquei-lhes que tinha tudo molhado, depois de uma semana sempre com mau tempo, em especial nos dois últimos dias e só faltou irem ajudar-me a montar o estaminé. Sim, porque quando estendi tudo o que estava molhado, eram as árvores, a vedação, a mesa e bancos, tudo colorido com roupa bafienta, tenda, saco cama, colchão, almofada, calçado, mochilas…pouco menos que um campo de futebol!!
Em Cardif está um monumento ao surfista, quem vestiram de Bob Marley. Parei para tirar uma foto e para um tipo ao meu lado que me pergunta se quero saber a estória desta estátua. E prossegue: aqui, em Cardif, somos os melhores surfistas do país. Esta estátua foi feita em Nova Yorque e, como vês, a posição do surfista é de “aprendiz” – os profissionais posicionam-se assim sobre a prancha, exemplificava. Por isso todos odiamos a estátua e todas as semanas fazem alguma travessura à estátua. Desta vez está vestida de Bob Marley; há umas semanas fizeram um tubarão que colocaram assim e parecia que o tubarão estava a comer a estátua! Aqueles tipos de Nova York são todos aprendizes, estás a ver…”.
Até San Diego ainda tomei café com um professor universitário, que me pediu desculpa pelo mau tempo. Habitualmente só chove por aqui a partir de Fevereiro e com pouca intensidade, só “light showers”. E agora esta tempestade em Outubro…é inédito, I’m sorry, I’m sorry”
Não encontrei em San Diego nada de singular. Praia e mais praia. Surfistas por todo o lado. Ciclovias a condizer. A cidade velha toda recuperada e bem preservada, mas exclusivamente turistica. Na Hostal em que fiquei, em Newport beach, encontrei um hambiente singular..e partilhei o “quarto” com o “terrível” estereotipo americano…estória que vou passar, pois agora, apesar da chuva parecer estar de volta, vou para o México, que deve distar escassas quatro dezenas de quilómetros…