Colômbia – de Cartagena das Índias a Bogotá (I)

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Idílio continua a sua travessia da América em bicicleta. Em Março já pedala na Colômbia e as sua histórias são sempre interessantes de seguir (http://bacalhaudebicicletacomtodos.blogspot.com).

A minha conversa com o Samuel, jovem francês que conheci no Hostal Musicology, em Bogotá, ilustra ao extremo o absolutamente errado preconceito que existe em relação à Colômbia…

Dizia-me ele que a família se despediu dele com o dramatismo de ser o último adeus, na certeza de que não o voltariam a ver com vida. Mas pior do que esse receio instintivo da família, foi a experiência na embaixada francesa, em Bogotá. Procurou os serviços da embaixada para se aconselhar sobre o país (segurança, zonas de interesse, sugestões e recomendações de quem está no terreno). Para surpresa dele, não o receberam – não sei se esperava uma recepção VIP do embaixador! – restando-lhe consultar o site da embaixada de França na Colômbia. Dizia-me que o mapa do país surge com duas cores: vermelho e verde. A verde as zonas seguras e visitáveis; a vermelho, as zonas perigosas, a evitar. O primeiro grupo resumia-se a Bogotá e Cartagena; o segundo, todo o resto do país!!

Em suma, o rapaz estava desorientado, sem saber o que fazer no mês e meio que conta passar por cá…

Recomendação: esquece tudo o que ouviste dizer sobre a Colômbia. Vem, vê, sente e tira as tuas próprias conclusões.

“Sin my amor”; “Sin amigo”; “que poso regalarte”; “ola my amigo”; “para servirlo, caballero”; “a la orden”; “con mucho gusto”; “acá lo esperamos”; “vuelva pronto”… Não, não são as expressões do dicionário nem a síntese do meu vocabulário espanhol.

Primeiro achei que seria linguagem artificial para seduzir o turista. Depois pensei que seria apenas em Cartagena. Mais tarde, suspeitei que seria apenas um grupo mais “letrado” ou “educado”. Finalmente fui percebendo que esta é a linguagem padrão que os colombianos usam, não apenas no tratamento aos turistas, mas no comum dia-a-dia. E mais dos que estas, e outras, encantadoras expressões, é a amabilidade, a delicadeza, a solicitude, a disponibilidade e, acima de tudo, a naturalidade com que se me dirigem. E o mais impressionante, é que este é o padrão “mínimo”, generalizado de norte a sul, do litoral ao interior, dos locais mais turísticos à mais remota e descolorida banca de beira-de-estrada…

Sobre Cartagena das Índias, pouco tenho a acrescentar às fotos do post anterior…é uma cidade encantada, encantadora e encantatória. São as cores deslumbrantes das ruas floridas, serenas, pequenas, familiares, vivas. Os jardins e praças repletos de gente – e não apenas turistas, apesar de os haver em demasia, para o meu gosto – onde se cruza o vendedor de gelados, de raspados, de sumos naturais e frutas coloridas, de arepas e outras iguarias de sabores, cores e aromas intensos. Os pátios, as portas, os postigos e as aldrabas, as varandas e varandins. São os restaurantes, os ateliers, as lojas de artesanato, de joalharia, de comes e bebes. São os jogadores de xadrez, de damas, de gamão. São os músicos e performers, que aparecem quando o sol desaparece, enchendo de ritmo, e ao som da rumba, as praças e jardins. É a história em cada esquina, na praça dos escravos ou das alfândegas, na casa do famoso pirata Francis Drake, de Simon Bolívar ou de Garcia Marques. É a colossal muralha, que demorou mais de um século a ser construída, e tantas vezes foi atacada e arruinada por franceses, holandeses e ingleses. É o enorme forte de San Filipe. É a cor e a luz e a luz e a cor, que se fundem e confundem, numa orgia de tonalidades quentes. É o mar catártico e infinito, sereno mas insondável. Esta é a espuma de Cartagena das Índias. Porque a alma e o coração da cidade, estão lá enraizados, incrustados, indivisos. E para os partilhar, são indispensáveis todos os sentidos, em total alerta e simultaneidade…

Antes de deixar a cidade, circundei mais uma vez, agora de bicicleta e com todo o equipamento, a imponente muralha. Devagar, à luz dourada do suave amanhecer. Uma última mirada, uma despedida serena, uma nostalgia antecipada.

Segui a estrada 45A, mais costeira e mais secundária que a irmã 45, em direcção a Barranquilha, à ilharga do Atlântico. E basta deixar as muralhas de Cartagena para cairmos noutro mundo. Num mundo de prédios incaracterísticos, no bulício dos carros ruidosos e impacientes e, não muito longe, nos bairros de lata e madeira, com ruas pejadas de lixo e cheiros imerecidos. Felizmente também ficam rapidamente para trás…

A estrada é completamente plana e a vegetação verdejante, ou não fora toda esta costa zona de aluvião, inundada a maior parte do ano. Talvez por isso, são raras as povoações e muito poucas as casas ao longo da estrada. Claro, de quando em vez há umas “villas” e aldeamentos turísticos junto ao mar, mas mesmo esses rareiam.

Até Barranquilha não há nada de excitante a assinalar. E em Barranquilha ainda menos! É uma cidade grande e feia. Moderna nos seus prédios de betão e trânsito intenso e apressado. O centro “histórico”, onde pernoitei, é mais um daqueles mercados enormes, com bancas de madeira ocupando passeios e parte das ruas, onde se vende de tudo. O lixo amontoa-se por todo o lado e os odores são condizentes. Ao que consta, a única atracção da cidade é o Carnaval, que dizem rivalizar, em dimensão, com o do Rio…

Depois de passar o enorme rio Magdalena, que cruza quase todo o país, de sul para norte, pude, finalmente, repousar da confusão e sordidez da cidade, e deixar-me absorver pela paisagem tranquila de Ciénaga – não da povoação, que essa dista mais de 50 kms, mas das enormes lagoas com o mesmo nome.

Quando olhei o mapa pela primeira vez, pensei tratar-se de uma ponte com 30 ou 40 kms. Só depois reparei em pequenos contornos de terra que extravasam ligeiramente o traço vermelho da estrada, que separa o Atlântico, da lagoa de Ciénaga Grande de Santa Marta.

São muitas dezenas de quilómetros de uma serenidade imperturbável…à esquerda, a vastidão azul de céu e mar; à direita a vastidão azul e verde do céu e da vegetação densa; à esquerda e à direita, lagoas de diversas dimensões e formatos, salpicadas de branco por milhares de garças empoleiradas em troncos de arbustos petrificados. Por vezes, surge do nada uma carroça, puxada por um cavalo a trote. Aqui e ali, dois ou três homens estão sentados na berma da estrada, junto de grandes caixas de esferovite. Afinal são pescadores e as caixas estão a abarrotar de peixe. Esperam uma boleia de regresso à aldeia…

A mancha verde desaparece paulatinamente, dando lugar a uma estreita língua de terra ladeada de água. A actividade piscatória é completamente artesanal e as “casas” erguem-se sob estacas, acima do infinito espelho de água. O acesso faz-se por longos pontões de madeira, com aspecto frágil e arcaico, ou em canoas não menos rudimentares. O tempo parece não ter passado por aqui…

Em Puebloviejo, sinto a contradição simplicidade e da miséria…enquanto um grupo de jovens, em trajes coloridos, se exibe no meio da estrada, procurando fazer parar o trânsito e angariar fundos para a rainha do carnaval, ao lado joga-se uma partida de futebol 11, com árbitro e foras de jogo. O recinto parece um campo de batatas acabado de lavrar e as nuvens de pó quase não deixam ver a bola. Também não deve ser muito importante, pois cada vez que bate no solo, muda de direcção…E quem não joga nem assiste ao jogo, nem recolhe fundos para o carnaval, paira inerte à porta de “casa”, à ilharga de magotes de crianças que brincam nas ruas empoeiradas…

Deixo Ciénaga, e a sua frota de coloridas bicitaxis, vendedores de peixe e animação musical, com as ruas a fervilharem de gente, e rumo a Santa Marta, a primeira cidade fundada pelos espanhóis na Colômbia, e onde o Libertador expiou os derradeiros dias.

Ao contrário do percurso anterior, não tem qualquer romantismo nem singularidade. Mesmo Rodadero, pequena estância balnear local, me parece demasiado igual a qualquer outra povoação de veraneio.

Como segui a estrada costeira, por Rodadero, avisto Santa Marta do alto de uma colina. A cidade fica num vale, cercada pela baia de águas azuis e uma pequena cordilheira montanhosa. Vista de longe, não é bonita. Tem uns prédios anarquicamente espetados do meio do tecido urbano e na periferia, mesmo aos meus pés, uma extensa zona de barracas…Decidi logo ali que não pernoitaria na cidade e rumaria a Taganga, uma pequena aldeia uns kms mais a norte, à distância de uma curta, mas grossa, subida.

A caminho de Taganga passei pelo centro de Santa Marta, que me pareceu muito bonito, impecavelmente recuperado e preservado, de pequenos e antigos edifícios brancos. Mas já tinha decidido ir para Taganga e assim foi. Numa rua bem quente e muito menos atraente que o pequeno centro, parei junto a um vendedor de água, sentado à sombra de um pequeno guarda-sol. Mas na Colômbia, quando se pára, mesmo para o simples acto de comprar 3 bolsas de água fresca e atestar a garrafa, a paragem pode prolongar-se inesperadamente. A primeira coisa que o Mário, o vendedor de água, fez, foi franquear-me o banco à sombra para eu repousar e me refrescar um pouco. E enquanto esticava as pernas e respirava, o Mário, ao sol e de pé, já se vê, contava-me a vida dele: que é pintor, mas como o dinheiro que faz com as obras que pinta não chega para sustentar a família, vende água pela cidade; tem dois filhos pequenos (já não recordo as idades), muito inteligentes e que adoram conhecer e viajar; vive numa casa de renda, muito pequena mas muito bonita; tem 41 anos, a mulher é muito bonita e os filhos são como ela (claro!)… e como eu ia para Taganga, ofereceu-me uma água para a subida, “que bem vai precisar”. Sempre a sorrir, sempre com uma amabilidade e simpatias tocantes. Apertámos as mãos e desejou-me boa sorte para todo o “recorrido”, como se fossemos estimados amigos de infância…

Afinal a subida não é nada de especial…inclinada, é certo, por uma estrada muito estreita e péssimo piso, mas pouco mais de um quilómetro. E quando termina a subida, logo se precipita numa descida com um miradouro sobre Taganga, a baia e a montanha. O miradouro debruça-se sobre a acentuada baia, em forma de ferradura, de águas serenas e intensamente azuis, em forte contraste com a aridez da montanha envolvente.

O topo da baia é circundado por meia-lua de areia, poiso de inúmeras pequenas embarcações coloridas e a povoação estende-se pelo exíguo espaço entre o mar e a inóspita montanha, que lhe dá um ar de refúgio e a isola do mundo.

Taganga é estranha, pois apesar da enormidade de turistas mochileiros, parece manter uma genuinidade de aldeia piscatória, com os miúdos a jogarem à bola na praia, os pescadores a chegarem nos pequenos barcos e venderem a pescaria no areal, famílias a passearem, namorados derretidos pelo poderoso sol poente.

Despedi-me cedo do mar – que não sei se é Atlântico se Caribe – e, pela primeira vez nesta viagem, voltei para trás, pela mesma estrada, até Ciénaga. Gostaria de ter prosseguido ao longo da costa caribenha, quase até à fronteira com a Venezuela, e descer pelo Valledupar, do outro lado da Serra Nevada de Santa Marta, que me dizem ser lindíssimo, mas tenho um compromisso com um companheiro de Viana do Castelo, que chegará a Quito dentro de uma semana e com quem conto pedalar uma temporada…e não o quero fazer esperar muitas semanas!

Há dois eixos viários que cruzam a Colômbia de norte a sul: um mais a Oeste, centrado na estrada 25, de Barranquilha, passando por Medellin e Cali, até à fronteira de Ipiales, com o Equador; e outro mais a Este, por vezes nas proximidades da fronteira com a Venezuela, ao longo da estrada 45, de Santa Marta a Bogotá, continuando um pouco mais para sul, mas sem continuidade para o Equador. Esta via percorre a vasta planície situada entre a cordilheira central e a oriental e a paisagem é enormemente diversificada (por certo a outra também o será, mas foi esta que escolhi, por me levar directamente a Bogotá).

A estrada 45 tem duas faixas de rodagem, uma em cada sentida, bermas grandes, quase sempre com bom piso, e uma quantidade de tráfico pesado, por vezes, infernal. Sendo Santa Marta uma cidade portuária e Bogotá a maior cidade do país, com mais de oito milhões de habitantes, o fluxo de mercadorias entre estes dois pontos é brutal e praticamente todas circulam por via rodoviária. Apesar disso, nunca me senti inseguro ou ameaçado pelo trânsito, e os momentos de maior suspense foram criados pelos condutores de autocarros em ultrapassagens estupidamente arriscadas. Paradoxalmente, e já noutros países vivi o mesmo, são os motoristas de autocarros, que transportam dezenas de vidas, os mais perigosos na estrada…

Depois de Ciénaga, a imponente Sierra Nevada de Santa Marta contrasta com a infinita planície verdejante, dominada pela monocultura de bananais. Durante muitos quilómetros, parece só existirem três elementos no universo: o céu azul, a montanha escarpada, nos seus 5775 metros de altitude, e as palmeiras verdes da planície.

A vastidão reinante é raramente interrompida pela ténue presença humana, com vendedores ambulantes à beira da estrada e muito pequenos povoados, o mais das vezes orientados para o negócio com os camionistas, principalmente pequenos restaurantes, “hotéis”, “talleres”, “montallantas” e “lavaderos”.

Os bananais dão lugar à ganadaria, por vezes intercalada com palmeirais (para a produção de óleo de palma) e coqueirais. Mas a actividade dominante é mesmo a pastorícia, com grandes manadas de vacas pastando na planície, que se perde no sopé da enorme cordilheira oriental. Tudo numa escala enorme, quilómetros e quilómetros, muito para além do que a vista abarca e a imaginação alcança. A diversidade das culturas é acompanhada pelo exuberante colorido das árvores, em tons de amarelo, verde, branco, violeta. Os bucólicos entardeceres começam a ser temperados por impiedosos aguaceiros, deixando no ar um rasto magnético de luz e o cheiro denso da terra húmida, no fim de um dia de intenso calor.

Em San Alberto, a estrada 45 bifurca. Pela direita, segue a 45, mais directa a Bogotá e sobremaneira mais fácil, já que evita o Canyon de Chicamocha (ou Pescadero, como também é conhecido), e pela esquerda a 45A. Como “em caso de dúvida, vou pela esquerda”, esta vez não foi excepção, até porque dúvidas não tinha – queria visitar San Gil, Barichara, talvez Tunja, e Villa Leyva, povoados coloniais que não iria perder.

Estava um calor abrasado(r) e, ao inflectir para a esquerda, um vendedor de gelados, daqueles que transformam a bicicleta em triciclo e instalam um pequena caixa térmica à frente, chama-me. Na verdade ainda pensei ignorá-lo, fingir que não o ouvi, pois certamente queria bombardear-me com perguntas sobre a viagem e, com este calor, não me apetecia. Mas lá virei a cabeça e ele acenou-me para lá ir (ainda por cima tinha de ser eu a deslocar-me, pensei). Depois de me apertar a mão, abriu a caixa dos gelados e estendeu-me um dulcíssimo gelado de manga, de fabrico caseiro, já se vê, envolto numa película de plástico transparente e com o pauzinho artesanal. Ainda lhe perguntei se podia pagar-lho, mas respondeu-me com um sorriso feliz, que nem pensar, era “regalo” para me refrescar de tanto calor. E lá foi e eu lá fui, por caminhos que não mais se cruzarão, apenas na memória simples destas palavras singelas.

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