Depois de uma manhã tão sofrida quanto arrebatadora, cruzando as derradeiras encostas do Equador, de Zumba a la Chonta, uma descida louca, com piso muito pedregoso, curvas apertadas e declive a condizer, leva-nos a la Balsa, na fronteira peruana.Pode seguir esta aventura no blogue http://bacalhaudebicicletacomtodos.blogspot.com/
Do cimo da encosta avista-se, no fundo do precipício, uma mão-cheia de casas separadas pelo rio Blanco e ligadas pela inevitável ponte “internacional”.
A 200 ou 300 metros do fim da descida, e do posto fronteiriço, a roda da frente fura, vazando instantaneamente. O péssimo piso, o declive brutal, o afluxo de peso à frente e o desgaste dos travões de trás, que quase não travam, acabam por castigar em demasia a frente da bicicleta e o resultado acabou por aparecer com a “meta à vista”. Fico particularmente aborrecido por ser tão perto do fim da descida, e decido fazer os últimos metros com a Dempster pela mão, até ao posto fronteiriço.
Sob o sorriso irónico do Luís, que parece ter pneus e câmaras-de-ar à prova de bala, desmonto a tralha e remendo o último furo no Equador.
Entrámos no Peru sob o sol quente do meio da tarde
Carimbada a saída do Equador, cruzo o rio e aterro no Peru. No posto aduaneiro, o funcionário aponta para outra porta, a uns 15 metros, como sendo a da imigração. Dirijo-me lá, mas no pequeno cubículo de madeira não está ninguém. Volto à aduana e o empregado esclarece-me que o funcionário deve estar a dormir a “siesta”, após o almoço. Pergunto a que horas reabre o posto e, com ar hesitante, diz-me que deve ser pelas 15h30. Pouco passa do meio-dia e a espera avizinha-se demasiado longa. Perante a minha imobilidade e apreensão, diz-me qual a casa do senhor Pepito e decido ir chamá-lo. Bato à porta, chamo pela janela entreaberta, afasto-me e grito o nome com mais força. Na realidade preciso que o senhor Pepito acorde, mas acorde bem disposto, pois caso contrário, pode ser pior a emenda que o soneto… Apesar do meu alarido, não há sinal de Pepito. Uma vizinha veio à porta e disse-me que ele estava a almoçar no restaurante da esquina. Lá fui em busca do importante funcionário, mas nada. Já tinha almoçado e ido para casa, concluiu a sisuda proprietária.
Não havia como arrancar o senhor Pepito da sua profunda siesta, pelo que decidimos almoçar também… Felizmente por volta das 2 horas lá apareceu o funcionário da imigração, calmo e pachorrento, naquela quente terra de ninguém.
Trâmites resolvidos, estômago aconchegado e alguns soles (a moeda do Peru) no bolso, regressámos à estrada, de terra, sob o sol quente do meio da tarde.
À saída do diminuto povoado de Namballe, quando a estrada começa a subir um pouco mais, o pequeno Juan Isidro, de 11 anos, e a irmã Maria, de 6, juntam-se a nós. Apesar do tamanho e da idade, vêm ambos montados numa bicicleta quase do tamanho das nossas. O Juan pedala com esforço, umas vezes em crencos, outras sentado no selim, e a irmã sentada no suporte metálico. O percurso de casa para escola, é quase sempre a descer, mas o regresso é duro, seja pelo declive, pelo calor ou pela chuva, pois durante o ano apanha de tudo. Quando a estrada é demasiado inclinada, a Maria tem mesmo de desmontar e corre ao lado do irmão, que continua, firme, a pedalar. Quando surge um troço mais plano, a Maria volta a empoleirar-se na bicicleta e, ambos de mochila às costas, seguem devagar. Quando pergunto ao Juan se gosta mais da escola ou da bicicleta, não hesita em responder “escola”, mas uma pausa depois, diz que gosta muito das “duas”.
De olhos semi-cerados, boné com a pala para trás e pequenas gotículas de suor a brilharem no nariz e buço, prossegue lado a lado com o Luís, com quem mantém uma conversa impressionantemente fluente e “madura”. Entretanto pára um carro. Vai para longe, para San Ignacio, mas faz este trajecto várias vezes, conhece os miúdos e dá boleias… A Maria esgueira-se para o assento de trás, o irmão passa-lhe a mochila dele e vemo-la desaparecer rapidamente no carro branco. Nós, só quase uma hora mais tarde chegamos à casa de adobe, perdida junto à estrada. A Maria, com as duas pequenas tranças de cabelo negro atadas com laços brancos e um sorriso alegre no rosto, espera o irmão à porta…
A subida prolongou-se por mais tempo que o mapa fazia prever. O dia, com a forçada pausa fronteiriça, reduziu-se mais que o habitual. San Ignacio parecia afastar-se irremediavelmente de nós… praticamente não havia povoados e os que surgiam à ilharga da estrada, eram de uma pobreza e abandono tocantes, difíceis de imaginar, com minúsculas casas de terra onde, surpreendentemente, assomavam várias pessoas. Porcos amarrados por pequenas cordas ao pescoço, revolvem a terra, paredes-meias com as “casas”; galinhas entram e saem pelas portas abertas; cães esquálidos coçam-se freneticamente.
Situado num vale verdejante, rodeado de árvores e encostas densamente povoadas de cafezeiros escuros – o principal meio de subsistência de todos os seus habitantes, como nos dirá o Ronal, ao jantar – Puerto de San António parece um pouco maior. No início da povoação perguntamos se há alguma espécie de alojamento na aldeia e dizem-nos que sim, apontando para adiante, na única rua que constitui o povoado. Volvidas escassas centenas de metros, voltamos a perguntar e a reposta é oposta: que não, não há nada, só em San Ignacio. Prosseguimos, fazendo contas de cabeça à enorme subida que nos espera, a juntar a mais uns vinte ou trinta quilómetros. O dia escurecerá rapidamente e é certo que não conseguiremos chegar a San Ignacio. Estão duas ou três mulheres à beira do caminho e o Luís repete a pergunta: se não há nenhuma espécie de alojamento na aldeia, algum sítio simples onde possamos pernoitar. Uma das mulheres diz que sim, lá atrás junto à igreja, exactamente onde nos tinham dito que não… parecia que estavam a brincar connosco, mas lá voltámos atrás e perguntámos, desta vez a um velhote que estava à varanda. Apontou para baixo, para a porta entreaberta, onde nos intrometemos. Acanhada, envergonhada, tímida, a Betty disse que talvez pudéssemos pernoitar lá, mas teríamos de esperar ½ hora pelo marido.
O Ronal chegou e, também um pouco inibido, lá disse que sim, que se arranjava um quarto com duas camas, ou dois quartos se preferíssemos. O que queríamos mesmo era um tecto e, se possível, um duche – quente ou frio, já não fazia diferença. As camas tiveram de ser montadas, um colchão surgiu de uma qualquer porta vizinha, mal sobrava espaço para um ou dois alforges no quarto, o tecto era de chapa ondulada, as paredes de adobe, alguns insectos planavam pelo espaço, o duche era frio. Ainda assim, estou seguro que tivemos dos melhores alojamentos da aldeia – e de muitas aldeias em redor. E o jantar também: luxuoso frango estufado com arroz…
Em boa hora conseguimos pernoitar em San António, pois só chegámos a San Ignacio pela hora de almoço do dia seguinte, depois de uma longa manhã à chuva, pela estrada enlameada e predominantemente a subir…
Necessitávamos levantar soles, mas o único multibanco foi rebentado numa manifestação recente e ainda não o repararam nem substituíram. A alternativa era rapar o resto dos dólares e recorrer a umas lojas de electrodomésticos que cambiam moeda…
Pouco depois de San Ignacio, ao fim de vários dias de dura montanha, a paisagem muda significativamente. A estrada conduz-nos ao rio Chinchipe, nas fraldas da amazónia peruana, ao longo de intermináveis campos de arroz, umas vezes exíguas parcelas encravadas no vale estreito, outras vezes perdendo-se no horizonte, onde esbarram no sopé de uma qualquer omnipresente cordilheira distante.
[mappress]