Peru III – De Cajamarca a Huaraz, Cordilheira branca

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Travessia da América em bicicleta

O serviço de lavandaria do hostal, fez retardar a partida para as dez da manhã, já o sol estendias os raios quentes pelo vale. O mais certo era não chegar a Cajabamba,como pretendido, mas ficar pelo caminho, provavelmente em San Marcos, o único povoado intermédio com alguma dimensão.

Idílio continua a pedalar na América do Sul e nos terrenos difíceis do Peru.

A estrada N3 começa por nos conduzir ao longo do vale, numa suave descida rumo a sul. Mas ao fim de escassas dezenas de quilómetros, muda um pouco de rumo e de fisionomia, atravessando-se as incontornáveis cordilheiras no caminho, ainda que não pareçam sequer primas das que ficaram para trás nos últimos dias. E com as colinas e a montanha, vem o solo árido, a paisagem agreste, a agricultura pobre, de pequenas searas raquíticas e pastoreio de ovelhas. Os burros voltam a ser o melhor amigo do homem e os porcos pastam com(o) as ovelhas, nas bermas da estrada. As casas são dispersas, de terra e com a terra se (con)fundindo, pelas encostas da serrania. Pelo menos a estrada continua em asfalto, enrodilhando-se suavemente pela orla dos montes, até transpor mais um cume – prolonga a distância mas suaviza as pernas.

San Marcos avista-se ao longe, no fundo do vale, no fim da compensatória descida. Mesmo à entrada da povoação, dois jovens, já entradotes na idade e na cerveja, fazem grande algazarra para pararmos e tomarmos uma cerveja com eles. O Luís ia uns metros adiante e tardou um pouco a reagir, mas eu parei a tempo e acedemos em tomar uns tragos de cerveja. Um estava particularmente embriagado e não se cansava de perguntar o que achávamos das peruanas, olhando com brejeirice para as duas “chicas” que estavam sob a ombreira da porta. Claro que por eles não arredaríamos dali sem esgotar o stock de cerveja, que ia rodando de mão em mão, até ser posta de lado e surgir a seguinte. Mas lá os convencemos que o nosso destino era outro e retomámos a marcha em busca de um poiso – apesar de ainda ser bastante cedo, Cajabamba era inalcançável hoje e não havia povoações intermédias.

Em San Marcos apenas encontrámos dois pontos de interesse: uma boa frutaria onde enchemos os sacos, por tuta-e-meia, como sempre; e uma pastelaria com excelentes sumos naturais e bolos – e como a vida de viajante é amarga, nunca recusamos abundantes bolos, gelatinas, pudins e toda a espécie de doçuras que temperem o palato, sempre que possível acompanhados por deliciosos sumos de toda a espécie.

(imagens Vida Quotidiana)

Alvíssaras para quem adivinhar o que vem a seguir… ok era demasiado fácil. Sim, se San Marcos era num buraco enfiado na montanha, deixá-lo é mais do mesmo: subir toda a manhã. É monótono!? Olhem para o retrovisor da vida e tirem as vossas conclusões; É duro? Só para os moles, que não é o caso; que tem de belo? de interessante? Nunca se sabe e depende dos olhares de cada um… depois de subir e descer, espezinhar a montanha, sentir o salgado suor na boca e a adrenalina das curvas nas descidas, fuzilar o horizonte com o olhar, beber a verdura e a secura da paisagem, sentir a exclusividade de cada momento, atolar os pés num rio caudaloso, onde um velhote lavava carinhosamente – assim me pareceu – a sua pasteleira, fotografar um porco preguiçoso que dormitava à sombra de uma choupana, certamente construída a seu mando, deparo-me com um magote de jovens estudantes, todos em bicicleta. Bons dias perguntas e respostas da praxe, sorrisos e exclamações, e estou a pedalar escoltado por sete miúdos. Devem faltar uns dez quilómetros para Cajabamba e parece que terei a sua companhia. Andam na casa dos quinze anos, estudam num colégio técnico, começam as aulas às sete da manhã e terminam à uma. Um dos miúdos, por sinal o único gorducho, encara-me e diz-me que tem fome – assim, a seco, olhos nos olhos. Ainda lhe mando uma piada parva, de que me arrependo antes de terminar. Pergunto o que comeu hoje e responde “um pão e um copo de quínua”, cerca das seis da manhã, antes de ir para a escola. Insisto se não levou lanche para comer a meio da manhã, pelo menos uma banana – que são ao preço da chuva, aqui – e parece que estou a dizer uma enormidade: ninguém leva essa coisa de lanche. Faço “contas de cabeça” e decido que vou repartir com eles as bananas que tenho – talvez não se sintam provocados por dar meia banana a cada um… Querem que visite uma qualquer lagoa “turística”, que fica mesmo junto à estrada, e faço-lhes a vontade – talvez seja o sítio adequado para o lanche… A lagoa fica no fim de um declive mais acentuado e o “gorducho”, transpirando e arquejante, fica para trás. Vista de cima, a lagoa parece um donut, com uns perus, de rabo em leque, passeando no centro relvado, rodeado pelo anel de águas com aparência pouco límpida.

Lanche

Abri o alforge e saltou-me à mão a metade restante de um bolo, mais pequeno que um queijo da serra, que comprara em Cajamarca e passei-o ao miúdo que estava mais perto, para que distribuísse pelos outros cinco. Tirei as quatro bananas e dei-lhe três – metade para cada um – e fiquei a observar as reacções deles… o bolo quase só dava uma migalha a cada, mas todos fizeram um ar de satisfação ao saborearem a escassa porção que lhes coube. E em determinado momento, estávamos todos em semicírculo em redor da lagoa, agarrados à bicicleta e com meia banana na mão. Foi então que chegou o gorducho, arquejante e transpirado, com a bicicleta pela mão. Dei-lhe metade da minha banana e constatei que não houve milagre que multiplicasse nem a fruta nem o bolo, pelo que cada um se contentou com a porção irrisória que lhe coube… e ninguém pareceu ficar ofendido ou desencantado pelo miserável repasto. Na verdade eu deveria se o único constrangido…

Apesar de meia-tarde, ficámos por Cajabamba. Na verdade, a zona é muito remota e quase todos os povoados “grandes”, onde se pode contar com algum tipo de hospedagem e comida, ficam em vales profundos, que podem levar várias horas a deixar para trás. Por isso, temos sempre algum receio em nos aventurarmos aos próximos 60 ou 70 kms, a meio da tarde, não vá a noite – ou a chuva – apanhar-nos, estafados, a meio de uma subida interminável, maior e mais longa que o mapa fazia prever… e, a meio da tarde, caiu uma tromba-d’água, daquelas que fazem “fumo” na estrada e desaparecer os próprios passeios!

(imagens Museu ar livre)

A caminho de Huamachuco, a estrada trouxe uma novidade absoluta: as mulheres, em vez de andarem de fuso e velo de lã na mão, tecem longas e coloridas peças de tecido – ou faixas decorativas – no processo mais artesanal que poderia imaginar…
Depois de deixar para trás a turística lagoa de Sausacocha, com a maior densidade de restaurantes que vi por estas latitudes, Huamachuco há-de despontar por trás de um qualquer dos cerros que preenchem todo o horizonte. Ao longo dos últimos quilómetros de estrada, de novo terrivelmente dura, pelo piso arenoso e o declive, surgem pequenas “explorações” de pedra, saibro e afins. Homens, jovens e, por vezes, crianças, cavam a montanha a picareta, “rapando” escassos “punhados” de inertes que vão amontoando em pequenos montículos, junto à estrada, para venda. Não imagino quantos dias necessitarão para conseguir “amealhar” um metro cúbico, nem quanto receberão por ele. Mas as suas caras, corpos e olhares, não deixam dúvidas: recebem fome e miséria extremas e a vida esvai-se-lhes, sem retorno, de cada vez que erguem a picareta ao céu e a lançam sobre a pedra dura, numa luta inumana…

(imagens Ruínas)

Markahuamachuco são as ruínas de uma cidade pré-inca, situadas a uma dezena de quilómetros de Huamachuco, no topo de um monte. No hotel dizem-nos que há “carros” junto à ponte, que nos podem levar lá. Mas fazemos sinal a um jovem que passa de moto-táxi e indagamos sobre a possibilidade de nos leva e esperar que visitemos o sítio, e respectivo preço. Pensa um pouco, diz que cobraria 30 soles, pois é longe e sempre a subir. Fechamos negócio, subimos para a moto-táxi e disparamos à aventura. Antes de deixar a cidade, o jovem motorista pára numa oficina e regressa com um pneu suplente; depois passa na bomba de gasolina e atesta o depósito. Finalmente estamos “listos” para deixar a cidade e trepar a Markahuamachuco. Primeiro por estrada de asfalto, ainda que com tantos buracos e pedras espalhadas pelo alcatrão, que mais parecia ter sido bombardeada. Depois entrámos na verdadeira estrada de cascalho, pedra solta e terra. Sempre a subir e com três adultos a bordo, a mota gemia, tremia, agitava-se ruidosamente quando o taxista reduzia de segunda para primeira e parecia lamentar-se quando fazia o inverso. De pedra em pedra, aos saltos; de segunda para primeira e primeira para segunda, aos urros; da esquerda para a direita, aos Ss, procurando evitar os calhaus maiores, lá conseguimos chegar ao destino – embora a última centena de metros tenha sido percorrida por nós a pé, pois nem em primeira a pobre coitada da moto-taxi conseguia transpor a subida.

Markahuamachuco é um enorme conjunto habitacional pré-inca (400 a 1000 d.c), que se estende longitudinalmente pela “crista” de um monte, ao longo de cinco quilómetros de cumprimento por cerca de seiscentos metros de largo. O estado da maioria das ruínas, é ruinoso, as respostas sobre o local, escasseiam e a recuperação, manutenção e estudo do espaço, “iniciaram-se há escassos meses”. Mas, ainda assim, é evidente a imponência da cidade, com muros de pedra “altíssimos”, uma praça de enorme dimensão e um castelo, entre outras construções. E a localização é, mais uma vez, impar, com uma vista dominante em 360º…

Pode seguir esta aventura no blogue http://bacalhaudebicicletacomtodos.blogspot.com/

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