Bolívia II – De Uyuni a Tupiza

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Idílio está a chegar ao fim da sua aventura pelo continente Americano. As suas crónicas e fotografias da Bolívia. Os duzentos quilómetros que separam Uyuni de Tupiza, não desiludem nem surpreendem.

São tão remotos quanto pode ser um deserto contínuo de areia, de pedra, de desolação, de secura, de abandono. A solidão é extrema e constante; a vastidão do espaço é esmagadora e, por vezes, assustadora; raramente passa um carro; raramente se vê uma habitação ou uma alma; não existe uma única árvore, ou arbusto; e os únicos seres vivos visíveis são escassas llamas, um ou outro par de vicuñas, e alguns burros, que aparentam espanto à minha passagem.

A estrada é infinita

A estrada é praticamente plana e apenas alguns troços de areia mais solta me dificultam a marcha. Preciso chegar a Atocha, vila mineira no coração do vazio, onde espero encontrar alojamento e comida, mas antes o piso torna-se mais difícil e as energias do inesperado almoço, em Rio Saladao (assim o miúdo disse chamar-se a minúscula aldeia que tinha um comedoro), já definharam na dureza e distância do percurso.

Os Lamas parecem ser os únicos seres vivos que resistem à dureza do deserto

Foi com alegria revitalizadora que vislumbrei uma raríssima placa de sinalização indicando 7 kms para Atocha!! E no fim da descida, já no lusco-fusco do longo dia, surgiu a desejada povoação, enfiada no buraco das montanhas e escalando um pouco a encosta lunar, numa visão monocromática, minimalista e baça, de vila mineira.

A jornada até Tupiza deveria ser bastante longa, demasiado longa, talvez, apesar de prometer uma “recta final” descendente. De qualquer modo deixei Atocha com a primeira luz da manhã, na expectativa, contida, de poder chegar a Tupiza ou, no mínimo, à vizinha Salo.

Atocha acordando, vem o sol e vai a lua

À saída de Atocha

Logo à saída de Atocha a energia da manhã não foi suficiente para poder pedalar toda a dura encosta que deixa o vale rumo à montanha. Mas transposta a íngreme subida, o ânimo voltou e o olhar soltou-se pelo infinito “altiplano”, poisando aqui e ali, em surpreendentes formações rochosas, no vulcão Santa Bárbara (?), enchapelado por uma nuvem persistente que apenas ia variando de forma, e na infinda estrada que se perdia por longínquas cordilheiras e encostas, que pareciam suaves. Na realidade, o altiplano aqui tem muito pouco de plano, sucedendo-se um interminável carrossel de desgastantes colinas. É verdade que o vento, hoje como ontem, foi predominantemente amigo e, sem a sua ajuda, não teria conseguido percorrer os mais de duzentos quilómetros neste piso. Mas também é verdade que hoje a procissão ainda vai no adro e, na parte final do percurso, antes da interminável descida para Salo, “rastejei” contra o vento e as subidas, parei literalmente para que a bicicleta não fosse no vendaval e desejei ter um abrigo onde ficar “até ao fim dos tempos”, ou do vento…

A descida para Salo adivinha-se primeiro e vê-se depois, na extensão do caminho que bordeja encostas sucessivas. Começa com uma descida suave mas rapidamente acentua a pendente para se precipitar, curva contra-curva, até atingir a vale plano onde desponta Salo, num pequeno aglomerado de casas de adobe ladeando a estrada. Os muros são de terra, os telhados de lata encimados por fileiras de pesados pedregulhos, os arbustos, espinhosas e mirrados, fazem-me lembrar África e as girafas que deles se alimentam.

Sobe e desce e sobe, sem rumo

Estou exausto, o piso promete muita areia e mais de vinte quilómetros me separam de Tupiza. Um trio de rapazes, não miúdos, mas jovens de 18 ou mais anos, jogam ao berlinde na rua poeirenta. Paro e pergunto-lhes se há um alojamento onde possa ficar. Olham-se surpreendidos e dizem-me que não, que ali não há nada, mas incentivam-me a prosseguir para Tupiza, pois está perto e é sempre “bajada”. Estamos conversados sobre o que esta gente entende por “perto” e também por “pura bajada”, mas o certo é que não tenho alternativa – na verdade ainda não é tarde e posso pedalar mais duas horas antes que escureça.

Ops! Será o fim do mundo, ou o caminho para os antípodas?

Como sempre, a bajada está repleta de subidas, ainda que seja predominantemente a descer, é verdade, o piso é terrivelmente mau, oscilando a areia e a “chapa ondulada”. E já perto de Tupiza, há mais uma subida para a sossega, que me obriga a caminhar e empurrar a Dempster. Mas também desta vez, depois da tempestade há-de vir a bonança e Tupiza há-de surgir do nada. No hotel Mitru começam por me pedir 100 bolivianos por noite, mas consigo ficar por 50 e um duche quente, e a certeza de que ficarei um ou dois dias a descansar, fazem olhar para a jornada finda com um sorriso e não um esgar!!

Nas imediações de Tupiza, começam a surgir surpreendentes formações rochosas

Tupiza é o faroeste. Já ontem, de Salo para cá, me tinha surpreendido com a morfologia e as cores das estranhas formações arenosas que ladeavam o caminho e que, afinal, não passavam de uma pequena amostra daquilo que viria a admirar em redor do povoado. Mas Tupiza não é o faroeste apenas pelos canyons, gargantas, penhascos e montanhas de intensos coloridos, onde predomina o vermelho e onde se imaginam cowboys, pistoleiros, ladrões e sherifes. É o faroeste também porque cá se escreveu uma célebre estória de gansters e pistoleiros… foi pouco a norte do povoado que, em 1903, a dupla Butch Cassidy e Sundance Kid perpetraram o assalto a Carlos Peró, o gerente local da Aramayo Company, levando o dinheiro dos salários dos mineiros. E foi em San Vicente, escassa centena de quilómetros a norte, que ambos encontraram “o fim da estrada” e as balas que lhe deram a imortalidade…

Pode seguir esta aventura em: http://bacalhaudebicicletacomtodos.blogspot.com/

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